Em comunhão: A Túnica Inconsútil
Amados irmãos e irmãs,
Não é de hoje que sempre ouvimos críticas à Igreja. Muitos falam de uma Igreja enferma, agonizante, que perdeu sentido e direção. Quem tiver coragem para ler todos os volumes da História da Igreja, de Daniel-Rops, verá que em todos pulsa uma Igreja que quase vai para a tumba. Mas não vai. Algo a socorre. Alguém a socorre. A túnica inconsútil já foi rasgada e remendada mais vezes que se supunha crível. E ela está aí, volta e renasce, sempre com força renovada e atual.
Na primavera de 1848, as chancelarias ocidentais receberam um relatório sobre um incidente que não parecia grave, mas foi. A estrela de prata da Basílica da Natividade, em Belém, havia sido roubada. O motivo mais provável do furto é que a estrela apresentava uma inscrição latina, e isso irritava profundamente o clero grego ortodoxo, que oficiava naquele local.
O furto da estrela de Belém emocionou os países ocidentais.
Foi enviado um comissário para investigar o fato e o inquérito apresentado não deixou dúvida quanto aos responsáveis. A Rússia, protetora dos cristãos orientais, criou tamanha celeuma, os interesses das nações foram postos de tal forma em causa por essa algazarra sem motivo, que o resultado não foi outro senão a lastimável guerra da Crimeia. E tudo por causa da estrela de prata da igreja de Belém.
Não resta dúvida que é preciso ter muita força de alma e muita humildade de espírito para admitir que, em tal lugar e desta maneira, quem está presente é o Deus de Amor, Aquele que “nós adoramos neste Sacramento”.
“Vocês serão reconhecidos por todos como meus discípulos pelo amor que tiverem uns aos outros” (Jo 13,35). Nada mais. “Eu não peço apenas em favor deles, mas em favor de todos os que vão acreditar em mim por meio da palavra deles, para que todos sejam um. Como tu, Pai, estás em mim, e eu em ti. Para que eles estejam em nós” (Jo 17, 20-21).
A força da divisão não esperou muito tempo para mostrar resultados. “Será que Cristo está dividido?” (1Cor 1,13), muito cedo escrevia Paulo aos cristãos de Corinto. Aos que eram de Paulo, de Pedro e de Apolo, ele gritou que ele era de Cristo. O quebra-cabeças incompreensível, que se chama Igreja, nem sempre se apresenta como harmoniosa colcha de retalhos. A túnica inconsútil já se rompeu tantas vezes que nem é bom inventariar.
“Deve-se contar entre os piores males dessa época que as igrejas estejam tão separadas umas das outras que mal exista entre nós uma sociedade humana, e menos ainda essa santa comunhão dos membros de Cristo que todos professam de boca, mas que bem poucos cultivam sinceramente na realidade”. Quem falou isso viveu no século XVI, e se chamava João Calvino.
Desde seu início, a unidade não foi exatamente o melhor folder da Igreja. Dilacerada entre tendências diversas – judaizantes, helenistas, docetas, gnósticos, arianos – não faltou quem, desde cedo, a chamasse a praticar o testemunho, a unidade. Tertuliano, em 210, criou a imagem da túnica sem costura, tirada do Evangelho de João (19,23), para falar da sonhada unidade da Igreja. Os Santos Padres da Igreja usaram essa imagem à exaustão. Tristemente sentimos que ela não pegou!
Sem mencionar as grandes rupturas do Oriente, no século XI, do papado em Avinhão, no século XIV, e dos processos reformistas-separatistas do século XVI, o tempo todo vemos, aqui e ali, ameaças de rupturas e quebra dos ossos do Crucificado. Nem os soldados romperam sua túnica! Nem os soldados lhe quebraram os ossos! Não sei de onde vem essa vontade incontrolável de romper, quebrar e abrir fossos.
São Vicente de Lérins, no século V, deixou-nos uma fórmula norteadora: “A fé é aquilo que foi crido, sempre, em toda parte e por todos”. E pensar que ele havia sido só um soldado do exército romano, no norte da França. Que soldado!
Ainda não tomamos suficiente consciência do escândalo da desunião. Conta-se a história de um brâmane, que ao informar a um cristão sobre seu abandono da religião hindu e ser convidado a entrar na Igreja de Cristo, ouviu com um sorriso triste: Qual delas? Só no meu país são sessenta!
É preciso criar algo como um Mosteiro Invisível, como dizia o padre Couturier ao jovem pastor Roger Schutz, no início da experiência da Comunidade Ecumênica de Taizé, nos idos de 1940. Essa mística da unidade é também uma nostalgia da unidade. Ou, se quiserem, virem a frase: a nostalgia é que é uma mística da unidade. O audacioso e ainda desconhecido Vaticano II legou-nos essa novidade. Ela ainda continua novidade.
Sem dúvida, a proclamação do Reino de Deus não foi uma iniciativa isolada de um grupo de solteirões e desocupados. Aquele movimento, que pôs em marcha um grupo de homens e mulheres saídos do povo-miúdo, tomou tamanha consciência do poder transformador de Deus, que era como se nada mais lhes faltasse.
A experiência foi breve, mas intensa. Todos os que fizeram parte dela conseguiram captar a preferência do Senhor do Universo pelos últimos dessa minúscula Terra. E puderam perceber como Ele prefere que todos sejam um. O mesmo poder de atração que Jesus exercia sobre as pessoas, e que as levava à plena adesão a Ele, gerou na Galileia um verdadeiro impacto de esperança e entusiasmo. Aquele rapaz, plenamente acessível, porque falava sempre ao ar livre e estava ali à beira de um lago, ou na encosta de uma montanha, gerou nos primeiros um tal desejo de ser igual a Ele, que vem atravessando séculos.
Ser igual a Ele é ser igual ao Pai, porque “Eu e o Pai somos um” (Jo 10,30). Enfim, a sublime aspiração humana de ser como Deus havia encontrado sua genuína resposta em Jesus. Não como a serpente havia insinuado ao coração da mulher: “Vocês serão como deuses” (Gn 3,5), mas como Jesus foi. Nada mais, nada menos que isso. Como Jesus foi.
Essa sublime verdade será experimentada em ocasiões fortes de nossa Igreja, em Niterói. A primeira, no dia 16 de julho próximo, na Ordenação Episcopal de Dom Luiz Antonio Lopes Ricci, na cidade de Bauru. E essa unidade se tornará palpável, em Niterói, no próximo dia 5 de agosto, no Ginásio Dom Bosco, às 9:30, quando vamos acolher nosso Bispo Auxiliar. Junto do altar do Senhor, vamos rezar por Dom Luiz Ricci que, em nome de Cristo, vem partilhar seu coração e sua vida no serviço pastoral em nossa Igreja. Nem preciso falar do meu contentamento. Nem preciso imaginar o contentamento de todos. Ele será visível, quando todos acorrerem a esse grande dia. Todos seremos um, no mesmo momento. Participe desse momento forte de unidade!
Essa sublime aspiração será vivida também no dia a dia, no barulho das máquinas, perfurando o solo e no suor dos pedreiros, colocando as bases de sustentação, as fundações de nossa nova Catedral. Nessa construção de unidade, com a oração e a colaboração de muitos, serão cimento e ferro unindo-se num só louvor, como camada após camada de cera são colocadas, umas sobre as outras, até formar um mesmo Círio, que brilha e resplandece à luz do Cristo Ressuscitado.
Essa sublime aspiração de unidade em Cristo já é experimentada e vivida em todos os cantos de nossa Igreja Particular, e da Igreja presente no mundo, em cada homem e mulher que, de joelhos ou em pé, orando ou agindo sob o impulso da caridade de Cristo, unem e cuidam da mesma túnica inconsútil.
Quem disser que isso não é um trabalho laborioso não sabe do que está vivendo. Quem disser que isso não é Graça sobre Graça não sabe do que está falando.
Estamos no momento de muitos começos. Que eles sejam todos abençoados, sempre, para maior glória de Deus.
A todos peço orações por mim e por Dom Luiz Ricci, a todos deixo minha bênção.
Dom José Francisco Rezende Dias
Arcebispo Metropolitano de Niterói